segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ANTES DE ME QUEIMAREM


Recebi boas críticas sobre o último post. Inclusive fui acusado de desconhecer a Bíblia quanto às informações relacionadas à migração dos filhos de Cão (ou Cam) para a África. Como se eu estivesse questionando a afirmação Bíblica. O que não é o caso.


Os que me conhecem sabem que dificilmente eu cometeria tal equívoco quanto a uma informação tão clara das Sagradas Escrituras. Então, para que não me chamem de herege, vou explicar minha indignação teológica quanto a esta informação:


Não questiono a informação de que os filhos de Cão povoaram a África. Está escrito!

Questiono, sim, a ideia de que a maldição de Noé esteja associada à cor negra da cútis africana e aos processos de escravidão que o Cristianismo avalizou.


A pele preta, segundo creio, está no DNA humano desde o Éden. Sua origem remonta o projeto original de Deus, e não uma suposta maldição posterior. E nada mais conveniente do que situar o Éden na África, para autorizar minha afirmação, vejam o link: http://www.cebi.org.br/noticia-impressao.php?noticiaId=133.


Crer diferente disso, especialmente para os fundamentalistas que me acusam de relativizar a Bíblia, seria descrer o criacionismo e submeter a teologia ao evolucionismo darwiniano. Crer que os filhos de Cão foram amaldiçoados, depois migraram para a África e depois adquiriram pele escura; seria afirmar que o homem evoluiu a partir de mutações, dependendo do ambiente onde habitou; o que não desejo descartar como hipótese; todavia os fundamentalistas que me resistem deveriam fazê-lo, para, por fim, abandonarem sua teoria “canina” como justificativa para a pele preta, a escravização e a pobreza dos africanos. É melhor admitir que produziu-se uma oportunista teologia racista.


Espero que esta breve ponderação ajude os escandalizados a me pouparem momentaneamente da fogueira; mas como não gosto de vida fácil, vou provocar outra vez:

O relato Bíblico, especialmente no Pentateuco, é uma transcrição das mais diversas tradições orais. A tradição oral pode sofrer variações de tempo, lugar e até de personagens.

Exemplos na Bíblia:


1) Temos duas tradições da criação; numa delas são criados macho e fêmea como um ato único de Deus; na outra o macho tem primazia em relação à fêmea.

2) Temos dois relatos de dilúvio. As quantidades de casais de animais salvos variam de um relato para o outro.

3) Abraão viaja duas vezes com Sara e é obrigado a mentir sobre sua relação conjugal. Os relatos são quase idênticos, não fossem as mudanças de local e personagens coadjuvantes.

4) Para o mesmo evento, narrado em Crônicas e em Samuel, Davi convoca o senso, ora instigado por Deus, ora pelo diabo; depende do escriba.

Considerando apenas os dois primeiros exemplos, poderíamos inferir que, no primeiro caso, uma sociedade patriarcal fez nascer um relato androcêntrico da criação, enquanto um relato mais popular não diferencia macho e fêmea no ato criador.


Do mesmo modo, uma tradição mais primitiva não distinguiria os animais em categorias de pureza para colocá-los na arca, esta consideração se aproxima bem mais das tradições sacerdotais posteriores. Vejamos que a lei que nomeia os animais como imundos ou puros é posterior ao êxodo, como este critério poderia ter estado presente no evento do dilúvio?


Admitindo que o relato escrito dista algumas centenas de anos do evento original, poderíamos assumir, com honestidade, que elementos da cultura e da sociedade do tempo onde o texto nasce, poderiam determinar adaptações ao evento original? Possivelmente.


Daí a opção de muitos teólogos de entender os relatos da pré-história bíblica (antes da formação de Israel como nação) como mitológicos; não porque sejam eventos fictícios, mas por serem relatos da interpretação socio-teológica do evento real, e não o evento histórico em si. (Existem, pelo menos, três possíveis tradições que explicariam as variações do texto do pentateuco: a Heloista, a Javista e a Sacerdotal).


Onde eu quero chegar?


Tudo que fiz até agora foi fundamentar a “heresia” pela qual os senhores me lançarão, sem piedade, na fogueira inquisitória do vosso evangelho “amoroso”, mas devagar com o fogo, deixa eu terminar...


Quando lemos a Bíblia, ingenuamente somos levados a crer que o texto é simultâneo ao evento (esta ingenuidade é uma dádiva e uma bênção bem-vinda para quem deseja ler com espiritualmente, mas perigosa para quem quer fazer teologia); a verdade é que, na maioria das vezes, o texto nasce para narrar eventos passados como tentativa de responder a demandas presentes. Por isso os eventos passados tendem a serem vestidos com roupas do momento presente, e por isso tornam-se mitológicos (eis a melhor definição que já ouvi sobre mito: “é uma verdade vestida com muitas roupas”).


Portanto, a ocupação dos continentes não se explica a partir do texto que diz para onde foram os filhos de Cão, de Cem ou Jafé; o texto é quem surge, posteriormente, para responder ao fato. Ou seja, quando o texto nasceu Israel já havia passado pela escravidão na África, e já enfrentava resistência dos povos árabes, mesopotâmios e dos hititas/europeus, entre outros; e não é de se admirar que, nos textos fabulosos das genealogias dos povos, Israel descende sempre daqueles sobre quem recaem as promessas de prosperidade e dominação, enquanto sobre os demais recaem as maldições e a submissão.


Me parece conveniente, se eu fosse hebreu e redator a Bíblia, que me apegasse a profecias/maldições que afirmassem que africanos, árabes, babilônicos e todos os meus inimigos históricos, devam se submeter a mim, simplesmente porque em algum lugar no passado, alguma profecia determinou o futuro dessa gente por toda era dos homens.


O problema é que, em algum momento, homens perversos, que nada tem a ver com a minha história sagrada, escravizariam os africanos e lançariam mão do meu livro sagrado, para justificar seus atos desumanos, e chamariam isso de teologia.


Eu digo que é uma interpretação racista, cínica e demoníaca. E reafirmo, contra todo dogma que tentar me silenciar. Se em algum lugar está escrito na Bíblia que a pobreza, a miséria e a escravidão de um ser humano é determinação divina, então o deus que determinou isto não é o Deus que se revelou a mim através de Jesus.


Tenho dito.

Agora podem acender a fogueira.


Fabio Castro

Um comentário:

  1. Olá pastor.
    Só um adendo:
    Se os cristãos cometeram o pecado de avalizarem a escravidão (avalizado em maior ou menor escala por várias outras sociedades e culturas), pelo menos tivemos o mérito de lutar para acabar com ela, mérito este que não vem de nenhum ateu, muçulmano, povos primitivos etc. Pessoas como Wilberforce, Wesley e os quakers se posicionaram claramente contra e foi esta uma das razões para os Estados Unidos entraram em guerra civil .

    De resto, concordo com a questão principal. Não possuo conhecimentos teológicos para comentar o resto do artigo, mas sigo a minha fé e o bom senso: a pele negra não é sinal de maldição.

    Abraços,

    Tamas

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